A
simplicidade na estrutura de Outlast se encontra na maneira como o jogo conta
sua trama. Completamente desprovido de cutscenes, a maior parte do pano de
fundo histórico se dá por intermédio de documentos encontrados pelos cenários.
Além disso, quando do uso de sua câmera digital, Miles faz anotações pessoais
pertinentes de tudo que testemunha. Mais interessante ainda é notar como o
personagem se deteriora mãos dadas a quantidade gargantual de loucuras que vê.
Qualquer sujeito naquela situação quebraria, e você vai acompanhar um
jornalista casca grossa, cheio de “fucks” e “assholes”, sendo fatalmente
afetado pelo que há dentro das paredes de Mount Massive.
Outra
coisa: trata-se de um personagem “mudo”, meio Gordon Freeman, meio Jack, do
primeiro BioShock. Mas o diferencial: apesar de o sujeito colocar toda sua
personalidade em diversas anotações, o real motivo para tal está nas reação de
Miles diante todo e qualquer acontecimento que toma forma jogatina adentro. E,
acredite, não há nada mais assustador que você não só se sentir na pele daquele
personagem que está controlando, mas também ter a real sensação de que seus
corações batem em uníssono. Nunca um jogo em primeira pessoa foi tão
efetivamente em primeira pessoa.
Basta
olhar para baixo para enxergar tronco, ombros, braços e pernas. Sei que muitos
jogos assumiram esta postura, mas
há sempre o questionamento do por quê a primeira pessoa? Para quê? Até mesmo
meu querido BioShock Infinite se sente como uma câmera flutuante. É o praxe do
gênero tão propagado dos shooters. Não há peso e real propósito além de
minúcias para controlar melhor a mira ou coisas que o valham.
Mas Outlast faz diferente. O movimentar do
personagem é mais balançado, seu agachar, mais crível. Você vê suas mãos
tateando os arredores, fixando uma quina de parede para espreitar o barulho que
veio do corredor. Ou na antecipação de abrir sorrateiramente um porta. Há,
inclusive, elementos de plataforma muito bem colocados: você verá Miles se
equilibrando em andaimes e tendo que se esgueirar por entre dutos de
ventilação. E sempre entram as reações do jornalista, seus gritos, sussurros
esbaforidos, coração batendo forte depois de uma corrida frenética terminada
num ninho seguro embaixo de uma cama fétida. Este é o tipo de implementação que
faltava ao gênero e que sequer nos dávamos conta.
Sempre foi de
certa forma perfumaria, desde Harry recobrando o fôlego no primeiro Silent
Hill, até Daniel exteriorizando sua loucura em Amnesia. Aqui, é parte
fundamental na construção de intensidade. Não há nada mais tenebroso que dar de
cara com um lunático em meio às trevas e sentir o personagem se assustando
tanto quanto você. E isso não só por sua “obediência” em correr
desesperadamente como o jogador ordena, mas também pelo espontâneo grito de
desespero daquele minuto em especial.
O fato
de ser sempre possível estar com a handcam em riste torna a perspectiva ainda
mais verossímil, já que a moldura do quadro se faz a partir disto, com o REC
piscando no canto superior esquerdo, ao lado do marcador do restante de bateria
e as demarcações de plano. Aliás, Miles só põe no papel observações quando de
uso de sua câmera, como se estivesse mesmo registrando o que vê como evidência
criminosa.
Outlast é todo alicerçado em construção de
momento. Diferentemente de The Last of Us, que cria de forma genuína cenários
reais de terror através das ditas “set pieces”, ou trechos delineados que
separam calmaria de tensão, Miles nunca encontra descanso em suas dez, doze
horas dentro do macinômio infernal. Não há essa “ponte” entre cenas. O terror é
iminente, constante e é quase possível cortar a tensão que paira
permanentemente no ar com uma faca. É impressionante, e relato um momento que sintetiza tudo isto.
“ Um corredor escuro, onde não é possível
enxergar um palmo à frente do nariz. A bateria está acabando, a handcam apita,
pedindo alimento. Eu sei que esse mísero barulho é o bastante para atrair a
atenção de seja lá quem for. Preciso passar por aquele sujeito aparentemente
inconsciente sentado em uma cadeira de rodas, para então chegar até a saída,
afinal, a saída só pode ser por ali. Agachado, com a câmera firme na mão direita,
a assustadora (e salvadora) visão noturna ligada orientando meu trajeto, me
esgueiro rente à parede, o mais longe possível da cadeira de rodas e do homem
decrépito, desnudo e sujo de fezes que ali está sentado. A música cresce, os
violinos, estridentes, se intensificam. O relâmpago ilumina por um segundo o
corredor e o bravejar enfurecido do trovão faz gelar a alma. Cheguei até a
maçaneta, abri a porta, estou numa nova sala.”
Outlast repete
o citado acima vezes sem fim. É a experiência mais real que um jogo pode
oferecer no quesito “causar medo”. Rotulá-lo como “simulador de pesadelo” me
soa tolo e superficial, já que tudo aqui é tão concreto – vida real – que a
única forma de vivenciar os horrores de uma clínica para doentes mentais além
do que é apresentado em Outlast é, efetivamente, estar em uma. O design se
constrói de forma a mesclar um certo convívio entre Miles e os pacientes – é
possível, em momentos, caminhar por entre solitárias, testemunhando o mais
degenerado estado da condição humana, com pessoas urinando e defecando entre
si, se masturbando ou durante auto flagelação – e o insipiente pavor que a mera
visão destas pobres formas de vida pode causar. A repulsa, o asco e o medo
serão seus maiores companheiros nesta verdadeira empreitada ao círculo mais vil
do inferno.
Não há monstruosidades em Mount Massive. Por
mais grotesco que alguns pacientes possam parecer, são meros resultados de
experimentações ou efeitos colaterais de medicações que deram errado. Conforme
a história progride, alguns doentes se tornam especialmente problemáticos. Como
é o caso de Chris Walker, um ex-soldado que veio a se tornar obeso mórbido enquanto
de seu tratamento. Walker se torna o Nemesis de Miles, o perseguindo por
diversos momentos. Seus pesados passos poder entregam sua posição, mas é
praticamente impossível fugir de sua fúria, caso seja visto. Apesar do sistema
de regeneração de energia existir (e de checkpoints um tanto quanto generosos),
é muito difícil sobreviver quando do confronto direto com pacientes. Como não
há combate, nada é mais valioso que um bom esconderijo.
Miles
não passa de um repórter. Desprovê-lo de qualquer função inerente ao combate
foi mais uma decisão de design bem acertada. Aos poucos, e quase sem tutoriais, você descobre
a real dinâmica de embate de Outlast: você não está com uma lanterna em mãos,
logo, você vê os inimigos no escuro através da visão noturna na câmera, mas
eles não o veem. É dos momentos mais assustadores dar de cara, ao abrir uma
porta ou dobrar um corredor, com um sujeito esquálido, portando nada mais que
um machete, com o rosto mutilado e com diversos cortes por todo seu corpo. Ele
só está ali, parado, em um estado de demência profunda, talvez atento a algum
barulho a distância, talvez em outro plano. A inteligência artificial é
completamente aleatória nesse sentido, o que faz tudo ser ainda mais
imprevisível e assustador.
Já que
não existe inventário ou nada do tipo, a pilhagem se dará só e exclusivamente
por baterias para a câmera, consumidas impiedosamente quando do uso da visão
noturna. Encontrar-se no breu total e sem baterias gera um desespero não só em
você, mas também em Miles, que se vê tateando seus arredores a esmo, num
desespero crescente. Portanto, o gerenciamento da quantidade de baterias é
fator primordial em Outlast – e é até legal onde as mesmas se encontram, quase
sempre em locais que fazem sentido, como em cadáveres de policiais.
É impressionante o que Outlast cria com o uso
das trevas profundas. Certa vez, me escondi de um maníaco que gritava por minha
vida em um banheiro e, ao controlar meus batimentos cardíacos e, só com os
ouvidos, perceber que o sujeito não estava mais por ali, resolvi abrir a porta.
Péssima decisão. O rapaz estava a alguns palmos de mim, parado, estático, esperando
o momento para me golpear. Larguei o controle, fui fazer um café. Não aguentava
mais a tensão nos ombros, já com o pescoço rijo, dolorido. Outlast é o mais
próximo que a ficção vai chegar de causar o efeito de eletrochoque ou de
espancamento. Não que eu já tenha vivenciado um ou outro, mas cada sádico com
sua sentença...
Felizmente,
há muitos lugares para se esconder no manicômio Mount Massive. Seja em
armários, embaixo de camas ou macas, por entre vãos ou buracos de paredes
destruídas, ou simplesmente de cócoras num canto escuro. Não há como seguir em
frente sem utilizar ao máximo das habilidades sorrateiras de Miles. Como não há
evolução, ganho de pontos ou novos itens, todo aprendizado adquirido se dá com
o tempo, assimilado pelo próprio jogador. E não me refiro somente às
capacidades do personagem, mas também ao mapeamento do local, já que você só
poderá contar com a própria memória para decorar caminhos em meio à escuridão.
Outlast é o que mais próximo o meio chegou dos ditos mockumentaries do cinema,
a citar A Bruxa de Blair e, em especial, REC.
Outlast
é surpreendentemente eficaz naquilo que se propõe a entregar em primeira
importância: causar desconforto. É – impossível – ser apático ao mundo criado
pelos experientes programadores da Red Barrels. Sustos, gritos, dores nos
ombros e pescoço, mãos trêmulas e músculos enrijecidos são inerentes à
experiência, já que o medidor de satisfação em um jogo de terror se dá pela
quantidade de vezes que você precisa de uma pausa dada a dose de tensão. Nem
BioShock Infinite, nem The Last of Us, Outlast é meu jogo do ano e não preciso
experimentar Beyond para chegar a tal conclusão. E caso se sinta um viúvo da
época áurea do gênero, você há de convir comigo: Outlast é o jogo mais
assustador já concebido.
Fonte:
PlayTv Games